05 março, 2010

Universo azul (flores da simbiose)[1]





-Pulok Pattanayak




I



Cantá-la-ei na lua undécima, nocturna, suprema,
evaporando ininterruptamente os seixos nocturnos.
Pela sua boca, canto iluminuras, pérolas, guitarras solares.
No odor a cedros, anuncio os seus dedos frágeis,
a sua infinitude;
— cabelos flutuando, boca dançarina,
os botões da Primavera lembrando a “Kreutzer
(Sonata n.º 9 de Beethoven), “staccato”, violino e piano, limite puro
— a beleza eclodindo em seus gestos,
discursiva, épica, derramando flores.

Proclamá-la-ei em seu domínio leve,
numa paleta de cores, entre violino e donzela:
um tempo para cantar a sua brancura, ecos da sua harmonia
— odes de água e silêncio.

Amo-a fundamentalmente,
reproduzindo o seu toque, a sua música,
as palavras e o amor (prelúdio de uma fuga).

Amo-a nas tempestades de areia, numa dança de fogo.
Ela, violinista, princesa das águas, alumia a plenitude indecifrada;
eu, poeta que canta o cobalto e as marés,
transcrevo a madrugada
para ela, cisne branco, Nereide do silêncio.

Na sua boca converge o sândalo,
como se fosse o espelho do mar e a flor eterna do instante.

Relógios amolecidos ditarão o absoluto,
desvendando a lua incompleta, novíssima, a noite dual.
Beijá-la-ei na ondulação do trigo (a água e os frutos resplandecendo).

Escreverei o tempo novo,
desenharei, nos seus cabelos, pássaros negros.
Dir-lhe-ei os corais, o universo azul, todas as distâncias abolidas,
estrelas marinhas e líquenes.
Segredar-lhe-ei toda a alquimia, perfumes voláteis;
o lume do olhar iluminando o seu rosto velado.

Amo essa mulher, os seus olhos opulentos, elegíacos;
nas suas mãos, perfumes de água,
numa janela veneziana, ela ¾ a própria noite.

Amanhece a sua carne e o seu silêncio.
Adivinho-a em cada pétala,
como se encontrasse o seu nome em cada aroma,
(permanece intacto o seu enigma, a sua boca).

Amo a sua delicadeza, a púrpura que incendeia as coisas.
Beijo o seu olhar;
escrevo-a na penumbra das aves, celebrando a sua música secreta
¾ o idílio de Siegfried e Brünnhilde ¾,
violetas submarinas.

Inumeráveis os cantos, os dedos, fragilmente.
O seu nome é tâmara, um nome que não se conhece;
um nome imperecível, coroado de diademas azuis.
Contemplo-a, no seu idioma secreto, na estrutura do amanhecer
(sei que o amor é primordial e antigo).

Cada tempo tem a sua coloração,
numa aprendizagem, nestas cidades,
irrompendo as fronteiras.

Falo a linguagem do mundo, densa e alquímica.
Nesses universos cósmicos, sou múltiplo e diverso.

Não espalho o meu amor cantante.

— Amo-a secretamente.




___________________________________________

[ 1.]     Publicado na colectânea “Afectos – amor”, Labirinto, Fafe, 2008 (1.º parte); “100 poemas para Albano Martins”, coordenação de MARIA DO SAMEIRO BARROSO, Labirinto, Fafe, 2012, pg. 70 (segunda parte); “Antologia de Poesia Contemporânea. Entre o sono e o sonho”, volume III, selecção e organização de Gonçalo Nuno Martins, Chiado Editora, Lisboa, 2012, pgs. 222-225 (4.ª parte). Em curso de publicação completa, in Revista “Foro das Letras”, da Associação Portuguesa de Escritores Juristas, Lisboa, 2012.




II



Abrem-se sobre ela janelas,
cabelos negros, macios de escuridão.

Procuro as suas faces opulentas, as suas pálpebras vivas
que derramam poesia.

Amo-a, arcaica, branca,
entre granitos, lírios silvestres, catedrais de luminosidade.
Amo-a primordialmente,
temperada, morena.

Como desejaria a sua doçura, o seu rosto, completamente;
beijá-la, ainda que efemeramente, num minuto da sua luz.

Procuro o seu rosto na multidão;
a tudo ela se assemelha.
Quero vê-la, protuberante, nítida, perfumada,
intacta, sublime, móvel.

Algures, fito o seu ágil andar, suaves acentos e aprumos;
ela, escultura da manhã; o seu centro suave de silhueta leve.
Desvairado, inebriado me arrebato, “amens amensque”.
Um pedaço de mim mesmo desfalece,
decreta o estado de sítio (o coração em desordem).

 Finalmente vejo a sua estrela na bruma,

— cabelos negros,

junto à boca.




III



Never seek to tell thy love,
Love that never told can be

 William Blake





Não posso inebriar-me por tanta beleza.

Se os meus olhos não tivessem vislumbrado o teu esplendor,
teria amado a solidão, esse destino inerte.
Não mo permitiram os deuses.

Nenhum oásis olvida a tua presença;
a incandescência dos olhos
impede-me de extinguir a fonte originária da minha inquietude.
Mulher de água, de plenitude inesperada,
como desejaria beijar,
longa, perene e delicadamente,
teus cabelos singularíssimos, compactos, homogéneos.
(Há tanta coisa que não conheço).
Beijar teus cabelos seria morrer na harmonia da tua luz.

Meus olhos amam-te inexoravelmente,
nas tuas ancas azuis dos teus jardins vedados.

Ao longe, morrem de amor os ramos[2],
pelo caminho transtornado da tua delicadeza.
Debalde peço a esses ramos:
— Ide dizer-lhe quanto a amo.

Quão longe poderia eu assim amar-te.

Diria a razão, o número das tuas pétalas.
Escrevo os caminhos eternos. Sou o silêncio e a voz.
Oculto-me  — sou secreto.

Via-te, aprumada e glamorosa,
no pólo oposto, junto aos apanhadores de borboletas
(Concerto para violino de Brahms, Opus 77).
As margens do caminho eram invadidas por palmeiras interiores.
E em pleno nada o tempo não se expandia
— a essência sempre parca de neve e rosa.
De vez em quando, comia rebuçados de papel
(a sua prata era viva).
Os violinos fragmentados eram as sombras dissolvidas,
cimitarras bárbaras, num êxtase asfixiante.

Queria revolucionar a estática imagem, a perenidade dos lábios.
Só me coube a estrutura espelhada do verso

                      ¾o nó que constrói silêncios.



[2] Cfr. verso de Federico García Lorca:“se mueren de amor los ramos”.









IV


 roubaste-me o coração
com um só dos teus olhares

Cântico dos Cânticos, 4: 9





Tu vieste com beleza e harpas, nocturna e soberana
(a lua era a tua voz).
Procurara por todo o lado, mas não vira nada tão doce como tu.
As tuas pálpebras eram a música por que ansiava; fruía a tua génese.
Em ti amava a brancura, nua e desfeita,    os olhos secretos e luminosos.
Eras nascente viva em que mergulhava as minhas mãos;
via, sem te ver, a tua imagem e transparência;
— a delicadeza eras tu, noiva da beleza.

Música e essência, tu surges sempre com vinho e harpas;
— para ti ardem casas, nuvens, flores.

Devo assinalar-te nesses cálices de doçura:
Como és bela e pura, serena como a brisa,
volátil e translúcida.

Ouves a canção das borboletas? É a tua face.
És graciosa como a palmeira delicada, saborosa e una
(para ti me ergo em pedaços de jade).
És um cisne, uma ânfora esguia de mel;
pronuncias cada sílaba docemente.

Contigo trazes a flor e o trigo, no esplendor da tua voz. 
Não há carne ou luz onde não esteja sorrindo o teu instante.
O mundo acorda a um beijo teu,
pelo caminho transfigurado da tua leveza.

Vejo-te em todos os vislumbres da perfeição.
Estás em mim, no meu corpo.
Cada dia reinvento os teus olhos intermináveis;
elejo-te continuamente,
soletro o teu nome, rememoro a brancura repartida.

És omnipresente;
estás em tudo o que sinto ou toco;
alumias a interpretação das coisas.

Celebro-te, inaugural, nas flores da simbiose.
Amanhecente da tua suavidade, do teu encantamento,
transformado pela tua leveza,
bebo-te baga a baga, no perfume das giestas.

— A tua carne é a carne do poema.
Que a tua flor seja a minha flor,
que os teus lábios sejam os meus lábios;
que o meu cálice seja o teu e que a tua noite seja a minha noite.

O tempo abre-se para nós, nas nossas mãos.
Eu amo-te nesse cântico sagrado de espuma,
nas metáforas exuberantes do silêncio.

A tua voz é o oásis de mim, a luz e o fruto
onde as magnólias se desprendem.
O teu corpo, feito de alegria e veludo,
é um poder leve, de estrelas e iodo;
teus cabelos, macios como seda marinha.
Pérolas são teus olhos, monólogos de alegria.

Renasces em mim perenemente.
És sempre tão nova e pura...
O ouro incendeia-se na tua face amendoada
(a minha amada é preciosa).

Feita da matéria nocturna e da matéria delicada,
das pétalas alegres de veludo,
és manufacturada e triste.

Adquires o corpo, as suas núpcias,
esse êxtase inefável e suave,
de que as palavras e cada gesto do viver se alimentam.

Beijo-te imaginariamente, apartas-me subitamente da melancolia.
Cativados pelos cabelos que anoitecem,
deveras os meus olhos te amam.

Tal como o éter é rasgado pela tempestade
— assim eu te amo.

A felicidade és tu;
a felicidade é ver o teu sorriso aberto e manuscrito
(como ecoasse o Concerto para piano e orquestra de Schumann,
terceiro andamento, e o grande amor por Clara Wieck).
Contigo, todos os céus e todas as estrelas brilham como outrora;
o dia torna-se mais claro e translúcido.
A teu lado, todas as coisas, deste e de todos os mundos,
são ditosas e diferentes.
As horas, contigo, são nenúfares mágicos e absolutos.

E os teus olhos são pétalas que se abrem, como borboletas azuis.

Oh, amada pérola, quão estimada és para mim!
Devo consagrar-te nesse poema aquático,
devo segredar-te a inalienável doçura.
E invoco para ti os pássaros, a flor do livro;
descerras para mim as pálpebras e tocas um interlúdio.
Resplandecem os frutos na tua boca
e é neles que pousa o meu coração.
             
             Em ti, a chama.
         Em mim, a morte e a alegria.





Ivo Miguel Barroso,
Assistente da Faculdade de Direito de Lisboa