31 agosto, 2009

fábula da grande frase

.
naquele tempo
em que os animais falavam
o lobo acomodou melhor a almofada sob os ombros
estendeu as pernas
estendendo-se, surdo enorme e esguio
e começou a ler
.
a fábula invocava figuras nítidas, puras
encantadas pela memória intacta,
encantadas figuras intactas
puras
.
a fábula tinha sons e cheiros e ruídos
do ambiente do interior
e do íntimo (que é um lugar ainda mais ao sul
do interior)
e luzes
.
a fábula gemia nos gonzos da língua doce do lobo
(doce lobo, ele também, sem que o soubesse)
descia em vapores suaves
erguia-se por entre o ar
morno
e planava
intacta,
febril mas intacta
ao ritmo cadenciado do passo da figura mais pura:
a da avó.
.
a avó
mais do que uma avó
era a chave de tudo
do enigma e do desencanto
do espanto e da descrença
da força e das franjas ralas
do vácuo e
do verbo
intacto
puro
nascido entre abraços doces
da avó.
.
o lobo falava, surdo. surdo, o lobo lia, lia-se
à medida que as figuras, exaustas, se aconchegavam
rente ao ventre da que mereceu o arco do silêncio e do verbo.

intactos
puros
rente aos seios da que mereceu
lamber o doce lábio do lobo ardente.
.
no fim?
no fim da fábula o fim não se deixa ouvir.
.
naquele tempo os animais falavam.
.
o lobo
enorme e esguio
começou a soletrar-se, surdo, na grande frase.
.
desde então
até hoje
a grande frase pôs-se ao caminho
ao encontro do verbo doce.

desde então
a grande frase cumpre o caminho
de fazer falar a doce língua do intacto
surdo
lobo.
.
maria toscano
Coimbra, 24 Julho/2009

28 agosto, 2009

Ao corpo azul das pedras

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Centro de uma Passiflora manicata / foto Augusto Mota
*

Iremos

onde os dedos são manhãs

onde os astros rebentam às flores

onde a geada
estende nêsperas de orvalho

e os peixes vestem escamas de nata

onde há rodas e carrosséis
e crianças de açúcar no regaço
dobando árvores de algodão

iremos

ao corpo azul das pedras
devassar o sossego
das algibeiras

à brancura luminosa
da pele molhada

iremos.
*
*
Graça Magalhães
*
in «Saudade», revista de poesia, Junho 2009, nº 11, Amarante, Edições do Tâmega.

26 agosto, 2009

TERRA PROMETIDA

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Barlavento algarvio / foto Torquato da Luz, 2008
*
*
Afasta de ti o cálice amargo
da cicuta que te envenena a vida,
dá todo o pano à vela, faz-te ao largo
e avistarás a terra prometida,
onde consta que jorram abundantes
o leite e o mel, como diziam dantes.

E, embora saibas que ela não existe,
pois tudo é sonho, tudo é ilusão,
essa terra que apenas entreviste
há-de oferecer-te a íntima razão
para seguires em frente e procurares
o que ao longo da vida imaginares.

Torquato da Luz

21 agosto, 2009

20 agosto, 2009

MORADAS DO SILÊNCIO

*
Moradas do silêncio
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Silves / foto de Torquato da Luz / Agosto de 2009

O silêncio tem muitas moradas,
todas elas
com várias portas e janelas,
saídas e entradas.
São moradas que o tempo
ergue em qualquer lugar
sem recear que o vento
as venha habitar.
Mas nenhuma tão cheia
de perfume do mar
como a que tenho ideia
de ler no seu olhar.

Torquato da Luz

NÃO É PRECISO

*
Janela / Sines

Janela / Sines - foto de Carlos A. Silva

Não é preciso a torrente
para explicar uma ponte,
basta um bago de suor
deslizando pela fronte.

Não é preciso o luzeiro
de uma estrela cadente,
basta apenas duas casas,
com as portas frente a frente.

Não é preciso um rugido
arrancado à multidão,
basta um fio de voz
entoando uma canção.

Não é preciso juncar
a rua toda de flores,
basta o vento que traz
o som cavo dos tambores.

Não é preciso correr mundo
à procura da verdade,
basta acalentar no peito
esse sonho sem idade.

Não é preciso bandeira,
nem emblema ou sinal,
bastam duas almas simples
irmanadas num ideal.

Não é preciso que o sol brilhe
para que o dia valha a pena,
basta abrir o coração
e colher uma açucena.

Carlos Alberto Silva, 19 de Agosto, 2009

17 agosto, 2009

12 agosto, 2009

No teu deserto*




"escrever é usar as palavras que se guardaram: se tu falares de mais ,já não escreves ,porque não te resta nada para dizer"

-*Miguel Sousa Tavares.

se te disser - tenho saudades - acreditas? sei que não
mas sim .hoje tenho saudades das tuas asas e do teu desalinho que te transformavam de ave em fonte .de vida .do deserto onde pintavas caravanas de amor .das dunas onde dentro escondias os poemas .havia um lirismo que te incendiava os dedos e a minha boca fechada tentava captar os sons do universo .eram asas os teus braços e linhas as tuas mãos .guiavas - 4X4 - naquele silêncio sereno que me habituou a ver .a sentir .a ser .o nada .o absoluto .tu gritavas .eu sorria e as pistas cobriam.se daquele frio de incêndio que só nós sabíamos traduzir .uma noite apontei.te o ruído das estrelas onde te reservei um espaço cativo .lembras.te? amanhã voltarei ao mesmo lugar .contarei de novo as estrelas e cuidarei de atirar pássaros de luz contra a escuridão do teu não estar .em comum manterei a solidão a memória a tenda e o livro aberto ao teu corpo .a tua fragilidade a minha força .o meu medo o teu arbítrio .doem.me as mãos ao desmontar.te .acaso descobrirei o trilho que os deuses nos reservaram

ou descerei a num novo poço de [in]significantes?



10 agosto, 2009

Regresso me


fotos e composição do vídeo de fernanda s.m. - http://estrela-da-madrugada.blogspot.com/

*

Regresso me
como se o silêncio
coberto a norte
e agitando as mãos
pudesse trazer outra vez
a brisa acrílica das ondas

e pudesse emergir do inferno
regando temporais de fogo
na combustão das saudades
nos molhos de lilases castanhos

Ainda acredito nos insectos
que não mordem intervalos de pele.
e adormeço o silêncio
das tardes alagadas

Nos meus olhos escorregavas a boca
pela nuca de salsa
e eu corria a imensidão do planeta entre as
mãos.

***** Graça Magalhães -

http://www.namemoriadospassaros.blogspot.com/

03 agosto, 2009