28 março, 2009

a noite Ser


tiro as mãos dentro de mim e deixo as memórias sobre a mesa desalinhada do tempo .desarticulo o rumor da rua que se reproduz .pouso a cabeça sobre a mão direita antes de deixá.la avançar lentamente .a pulseira cai em direcção aos dedos embriagados .os lábios estendem.se .o olhar perde.se liquefeito em eco .apago as imagens vívidas e brinco com os dedos abertos antes de a dorme ser .sonho.me debruçada sobre a chuva de cabelo branco a escavar o tempo e caio na margem de um sono afogada na distância do a noite Ser .sou um animal de rugas desfeitas que se encosta à dor .e sei .sei que adjectivo mal e escrevo ainda pior .não me importo .pouco me importa a palavra e o espaço que se multiplicam entre mim as imagens os dedos os olhos o tempo e o sono .as pálpebras fecham.se ao ritmo lento da voz .não me obedecem .ainda bem .antevejo uma mulher debruçada sobre um balcão de bar e grito.lhe - "hoje faço 30 anos!" - .desfaço.os e desenho.me de ombros/asas abertos .acordo .abro os olhos e vejo.me suspensa em ternura .abraço o vento e aquieto.me na [in]tranquilidade de escrever .hoje faço 30 anos .sou um barco-mulher-vento que navega a noite respirando amor e esqueço .esqueço.me que faço 30 anos

e devagar deito.me sobre as lágrimas onde se amoram as palavras



-gustav klimt.

gabriela rocha martins

27 março, 2009

Só o vazio das mãos...

A roupa cerca-nos mãe
agora que deixámos
o bater do coração.

Deixámos de cantar
sobre as asas do corpo
a verdade possível do tempo
que a mágoa extensa alastra.

A estranheza é a de haver cinza
sem ter corrido o fogo
e neste incêndio não haver perda.

Só o vazio das mãos.

Graça Magalhães.

20 março, 2009

RUA DIREITA

Foto de Nuno Verdasca

*
rua direita

é bom sentir o coração destas pedras
dentro do peito em abraço sentido
seguindo as pisadas esquecidas
das vielas esconsas e doloridas
veias do labor antigo

abro os sentidos por entre as casas
velhas da cidade companheiras
exaustas dos caminhos suaves
onde se entretece a memória


orlando cardoso


( Lido durante as comemorações, em Leiria, do Dia Mundial da Poesia, numa parceria da Livraria Arquivo, do Te-Ato e da Câmara Municipal. Foram lidos poemas de vários autores, por elementos daquele Grupo de Teatro de Leiria, em diversos locais da cidade ).


Foto de Augusto Mota

CROCODILOS NO DOURO

Metamorfose - desenho de Augusto Mota, 1961
Flo-master e marcador, 31 x 49 cm.
*
Crocodilos no Douro
É pior do que Camões ferido em Ceuta.
O instante, a fotografia,
O efémero para fins comerciais
Atira para os olhos um fumo de cozinha
Jornalístico, garrido, fotogénico.

O Douro não nasceu mouro,
De um canteiro fazem uma pipa
Vinho no rosto dos socalcos
A vender-se, a vender-nos, a beber-se e beber-nos,
Nesta terra além, não dos mares
Mas dos tempos, entre dois lugares.

A Gorgona canta destinos,
E do nosso, desolhados,
Seguramos o manuscrito
No mar que nos coube a Oriente,
Em dia de poesia,
Depois de termos sido país.

Crocodilos no Douro?
Quem sabe se destino
De mares de sargaços,
Estiagem de prémios vis
Na Lisboa onde o rosto
Foi para detrás do sol-posto.

António Augusto Menano, 19.03.2009

CORPOEMA

Borboleta Cauda de Andorinha (Papilio machaon)
Foto de Augusto Mota
*


quando
sinto a poesia
dentro do corpo
é que sei
que não estou morto -
Sob as pálpebras,
no rosto,
entre os dedos,
as palavras,
como crisálidas adormecidas,
esperam,
trémulas,
as asas que as desprendam -
as asas que tu lhes trazes! -
E é só quando chegas
e me beijas o corpo,
verso a verso,
e o lês como se lê um livro,
que elas se libertam
e eu sei que estou vivo -
E vou
E voo
em cada palavra
ao encontro de ti
ao encontro de mim
no corpo do poema.


António Simões, 1978

PROCURA

procura o nome mais distante para um relâmpago,
talvez exista no âmago de uma caligrafia estelar,
se a procura for brusca ou imprecisa ,
se um raio quebrado desenhar um rosto no céu ,
procura a festa no calendário dos pássaros

eles transportam o fogo, a água, o pão,
conhecem os sinais das tempestades,
decifram o ar em segundos,
batalham asas a planar,
são do mundo ,
são as sementes eternas da terra,
pousam num incidente escasso de tempo,
num só vislumbre vêm descansar

José Ribeiro Marto

SÃO VERSOS

Esperança - desenho de Augusto Mota, 1961
Guache e flo-master, 29,5 x 28 cm.
*
II
são versos............ esboços incompletos
do povo............ volátil corpo
matéria
ao longo de trinta anos
azul de anil
é cor............ espanto
grito............ negação
quem usurpou de Abril
o R
de REVOLUÇÃO ?

gabriela rocha martins, in «.delete.me.»,
edição ”Folheto Edições & Design”, Leiria, 2008, p.41

17 março, 2009

10 março, 2009

flauta silenciosa

Flores e brotos floríferos de Cerejeira (Prunus avium) - foto: Augusto Mota

*

o poema é feito de nossas próprias vértebras
disse-o Maiakowski
indicando onde começa a direcção da montanha

aguarda longas estações no decorrer do gelo
libertando a lua do orvalho branco
a meia distância da casa do silêncio
e das florestas do sândalo



os brotos mais tenros
invadem a primavera
chegando com a luz do jade

e os versos tombam em frutos dourados



maria azenha


08 março, 2009

ENCANTA-ME

Rio de Flores - Foto de Augusto Mota, 8 Março, 2009.
Colipo / Quinta de S. Sebastião do Freixo.
*

A Yvette K. Centeno

Encanta-me,
conta-me um rio que já existiu,
põe de árvore a primitiva ponte,
uma corrente bravia só no estio;
o horizonte na frescura da erva
talha-o a degraus numa só pedra

Encanta-me,
conta-me um rio que já existiu,
que eu amanheça nessa espera,
em que todos já disseram:
é dia.
E eu atenda ao silêncio,
só quando entardece


Conta-me um rio,
com um sol que já se viu,
num céu de luz e de nuvens,
tocado, manso, frio

Conta-me um rio,
onde eu fique descalço,
e os teus braços só tenham
dos meus estes abraços.

Conta-me um rio,
com uma fera que gema e ria,
tremendo da mesma espera,
uive o vento morno do dia.

Encanta-me,
conta-me desse rio que já existiu,
o longo curso fundo , manso,
e a tal fera a pedra lance,
eu descanse.

Encanta-me,
faz-me de mirto azul de chuva,
candeia alta, margem sussurro,
eu sopre o vento - descanse

Encanta-me ,
conta-me um rio,
estas casas são demasiado altas,
este silêncio vem inteiro da noite,
podre já vem o dia.

José Ribeiro Marto

07 março, 2009

08.03.2009 - parabéns ,amiga!

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Foi um tempo de deixar falar os afectos
......
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excerto e fotografias de Fernanda Sal Monteiro ( clique )
entre o corpo e o crepúsculo a terra
tão súbita tão pura
a mesma sede

deixa-me colher na vigília deste vento
a palma desta fonte
a viandante estria a dor viril
da nua madrugada

deixa-me escorrer no sol assente o baleado sonho
a sangue frio
líquida como as ondas e os anjos.

mariagomes
dez, 2008

TEXTO TRANSVERSAL

textos transversais 75

06 março, 2009

gerês

Ninho de Pedras - desenho de Augusto Mota, 1961.
Verniz celuloso e flo-master, 27 x 19,5 cm.

*

as nuvens estão juntando o céu aos bocados
nas montanhas está escondido o puro ouro

o ar completamente limpo
faz cair do alto
flores
no púlpito das árvores

mais tarde
quando entrar a noite
as pérolas vão-se unir aos troncos


como as pedras lembram um caminho
sem paredes
no percurso do jade

maria azenha

04 março, 2009

Versículo 1

Prendam-me que não sei quem amo. Prendam-me. Virei a página mas o livro é o mesmo. Mudei o amor mas não o lugar do coração. Prendam-me cá fora. Não quero acabar dentro sem engolir por fora a revelação do que fui. Tranquiliza-te mesmo que não compreendas por que razão deixei as minhas impressões digitais na tua língua. Ninguém vai bater à porta. Ninguém vai perguntar a data de nascimento da tua solidão. O número de identificação dos teus sonhos. A matrícula do teu passado. O nome completo do teu coração. O estado civil dos tendões do teu pensamento. Ninguém vai. Enquanto me entreter a fazer festinhas ao tempo à paulada. Porque o tempo que engoliste sem saborear as horas e os minutos e os segundos mais ninguém vai usá-lo. Nem para pano de limpar o chão.
Pacheco Eduardo

01 março, 2009

...a palavra querer

Narciso ( Narcissus 'Oraglow' ) - foto de Augusto Mota


*
Semeio palavras.

Com elas procuro na luz
esse silêncio violeta intenso
que chega com a palavra nuvem.
Posso acordar o tempo
com a palavra miopia
lembrar-me das areias cetim
da minha infância.
Com a palavra árvore
a fragância dos pomares
num campo amarelo
sem-lágrimas.
O mundo voltará a ser
quente ao luar
tombando os punhais
na véspera da morte.
Com a palavra estrela
puxada por sete carrosséis
procuro a palavra amor,
a palavra respeito, a palavra esperança.
Faço agasalhos-poema com as coisas que descrevo.
Às vezes inscrevem-se nos olhos.
os cristais de algumas palavras

Por isso trago sempre comigo
A palavra querer.


Graça Magalhães