30 junho, 2008
A Miguel Hernández
(A Silvestre Raposo que um dia me relembrou a história ...)
talvez tivesses ido ao fundo da algibeira e tirasses dela uma guitarra andaluza no oiro de umas horas invisíveis e um cante já fosse noite
um cante por inteiro só de vida com a lua a festejar-se
no azul do teu fato e na corrente intemporal o sol ainda se prante
talvez tivesse sido o vibrar dos ponteiros desse relógio preso a oiro num gemido e tenhas tidas muitas horas só no rosto reunidas
talvez tivesses dito:
- tenha eu um bago de murta branca ainda e uma espiga arrancada do centeio nestes campos e mais adiante veja barrancos vermelhos como a lua pingando astros brancos no tremer do trigo tremês
talvez tivesses pensado :
- descanso
- tanto tenho andado
eu sinto essa espera de ver horas num estômago de andar caminhos
acompanho-te no tempo e no poema que ainda não está escrito
talvez a ti chegue como hoje chegam as horas de luas fundas aos palmares à mediterrânica luz quente que avermelha a chuva
soe no teu ouvido uma campainha da igrejita do pueblo
da tua infância
cantem campainhas nos campos vendas leite te soem versos
no trilho das cabras passando ao lado na espaçada distância
na medida tradicional de o verter e sentir o branco da medida talhada na rima do gesto de a sentir e servir
e do acerto do tempo do frio e sol chuva e vento em Oriuhela
talvez o sonho de Madrid na paga de quem desdenha e ri
tu crias e de crer deixaste na lã cipreste um cante de arena
talvez lembrasses a folha de hortelã a herba buena
visses dois pés num azul de fato todo branco levantado todo corpo
na coragem de um campo circular de touros de sangue a explodir morte e
tu andando sendo esse o teu o caminho de brio confiante
talvez na treva de um barranco tenhas visto aí por um nada
horas que eram anos e graças de assobio só de pássaros lavados
e frutos vivos tivesses por companhia soubesses que ainda eram engolidos
pelo fumo e nem havia nem brilhava o sol do meio dia
assim eu te pranto
a golpe de melancolia
eu te canto
eu te sei eu me hermano
e tu
sob o céu sempre negro de fumo de asas de um corvo velho
cobrindo o tempo de faísca e pólvora e tu tocado ainda no corpo
pressentindo cada piolho do tamanho de um figo de piteira já na tua pele de prisão ávida de engordar no dia-a-dia no teu coração de poeta de uma só palavra
eu te canto
a golpe de melancolia
eu te sei firme na distância de um barranco
eu te canto e nos meus dias te irmano
os espinhos mais que os piolhos vermelhos de sangue
já viviam na alegoria de cada instante
foste caminho com a boca correndo a quilómetros
podias mais com a guitarra de algibeira
o relógio mais puro doado por Vicente Aleixandre e
o vender quisesses pelo preço de um só dia
de uma só côdea de um só gole de água
não correndo nada num só pequeno rio
eu te canto
eu te sei
eu te pranto
é minha a melancolia
e te tendo perto de alegria
não querendo eu te pranto
talvez a esteva florisse por ti viesse uma qualquer cabra alvoraçada
para comê-la fosse longínqua a língua e a lua tão distante verso escrito no cabelo do vento levando notícia a Josefina e a vosso filho dizendo:
- tenho a lua do meu lado agora brilha numa guitarra de ponteiros de relógio sei as horas ainda sou Miguel Hernández
talvez quisesses um trilo harmonioso tivesses o teu ouvido à espera de poucos pares de violetas pretas abrindo hastes verdes
mas o sol era uma evidência de pólvora de sangue nos pés de muitos caminhos
talvez fosses acompanhado e com um verso miúdo encantasses uma criança um filho corajoso para o futuro no teu relógio de ouro doado e esse filho fosse ainda outro Serrat o da voz cantada já te acompanhasse
dando -se por inteiro às nanas de cebolla que ouço na tua língua
só na tua língua de escrita lida ou cantada
talvez quisesses guardar o rebanho em Orihuela à mingua de tudo
qualquer que fosse a estação do ano não indiferente ao relógio de ouro sempre presente ainda os figos de piteira não se alimentavam dos teus ossos
nas prisões onde te veio a tuberculose mas antes essa do que uma candeia apagada com um Leque de carne vermelha e amarela Sujo
talvez não suportasses esse gesto perverso que apagava do sul
o teu mundo nómada de nascença e extinguisse para sempre o sol do sul e de muito mundo ainda por vir
talvez nada pensado assim fosse mas com tudo isto se parecesse e eu soubesse por uma corrente nos dias tu outros tantos viessem para Lisboa vinte escudos recolhidos no bolso de fato azul uma fuga que te acompanharia o pescoço as horas paradas quer no norte quer no sul e na tua corrente amealhadas cantando o grito inaugural que se coalhava nas estradas e não vibrava como o lume
imagino-te na relojoaria impondo o relógio às horas mercantis e pobres e te fizessem passar por ladrão ou vagabundo a libertar-se do tempo
e a tua voz dizendo:
-sou um poeta e quebro outro tempo ouço outro mundo
-sou um poeta vendo outro tempo
- vendo um relógio por alimento
e alguma gente de olhos ocos e ouvidos desertos
te vingasse sorridente enquanto outros deixavam
para sempre a tua passagem perto de Moura
na aldeia ferida de cal e negro de Santo Aleixo
a terra viva de poeta e ainda diga por muito tempo
num coro ou numa só voz
esta terra tem ainda um relógio de uns passos
um fato azul vinte escudos no bolso aqui passou
um poeta a quebrar o Tempo
José Ribeiro Marto
Canção de cuna: nanas de cebolla de Miguel Hernández, cantada por Juan Manuel Serrat
Hoje é domingo. Há três noites que invento fantasmas.
Quando a noite nascia as estrelas inundavam os pedaços escuros do céu que pairava sobre nós. E o silêncio que caía, quando vozes fortuitas se abafavam era nada mais que o silêncio que eu vivia enquanto me aninhava no colo do jardim. Dobrada sobre mim própria, os pêlos dos meus braços eriçavam-se e eu, tremendo, fitava do outro lado da praça aquela forma de ser, aquele parecer intrigante de ave nocturna.
Era quase como um encontro entre nós, apesar de não proferirmos palavras nem elaborarmos gestos. Uma peculiar forma de entendimento.
Havia três dias que me sentava naquele banco de automóvel, numa meditação introspectiva, como quem inventava desculpas para não regressar ao isolamento de quatro paredes e um cesto de frutas como centro de mesa. Como quem não queria regressar ao frio dos lençóis da cama impecavelmente feita.
Havia três dias que, na outra margem de um país estreito por onde a límpida água corria fugazmente por entre rios de granito, ele existia naquele espaço e tempo e interferia no universo. Tudo começara tão inocentemente como o despertar da Primavera. Uma presença casual que se transformara num entendimento mútuo, numa sublime troca de olhares.
Havia três dias que o estudava. As suas reacções a pequenos ruídos, vislumbres, sombras, aromas. Estudava os seus sentidos, adivinhava as suas feições, e do nada construía-o. Construía algo mais, sempre algo mais. Por vezes, algo demasiado.
Ele também delineava na minha presença ténue algo mais do que uma mera imagem. Desenhávamo-nos. Com lápis de cera e marcadores para os contornos.
Hoje
é Domingo.
Há três noites que invento fantasmas.
Graça Magalhães, Junho 2008.
Os Peixes Vivos
Mãe
Veio uma canção camponesa sugerir o Sul
Veio devagar com o vapor dos pássaros
Sopra lenta e solidamente sobre as minhas mãos
Sabes Mãe Eu só sei falar de mãos
Marés e ilhas sem pescadores
Sustentam-me ventos e bússolas
onde dormem os berços das crianças todas
Sustenta-me o hábito de trazer o verde As areias
As fotografias Os fogos extintos Por fora
As águas cheias de peixes
Os peixes vivos no convés da memória.
mariagomes
in " Antologia de Escritas 2"
1ª edição, Março.2005, Lisboa
Organização de José Félix
***
as cartas de amor são papéis pintados com máscaras
não se podem escrever cartas de amor em papéis vulgares de cartas
as cartas se são de amor fazem relâmpagos na água da alma
e acendem o lume das casas interiores com metáforas
só se pode falar de amor usando estes fósforos com letras
tudo o mais é falso e redutor porque não é amor
as cartas se são de amor falam todas as línguas ao mesmo tempo
fazem grandes trovoadas dentro das secretárias
não carecem de vozes exteriores para as enviar para o espaço
elas lá seguem no pensamento invisível dos átomos
quem escreve cartas de amor atira o alfabeto contra as paredes sem nada
vê de repente poentes escritos e sabe que o amor
usa a mão do acaso das estrelas e dos astros
maria azenha
fotografia de michael borgulat
29 junho, 2008
"estou num rio" / "estoy en un rio"
Ángeles de risa y sal
infante
as pousadas
Ira
o crescer do aço dos dedos, esse brilho anónimo que
o nascer teve no duro do olhar. Se pudesse iria até
à destruição do tempo. Mas não, algo me diz que não será
necessário. Ele, o tempo, será eternamente o senhor dos
punhais.
Jorge Fragoso, 1998, O Tempo e o Tédio, Palimage.
Comunicação apresentada por Pompeu Martins no lançamento do livro de Graça Magalhães "Lavrar no Corpo das Algas"
Por Pompeu Miguel Marfins
Viseu, 31 de Maio de 2008.
«Lavrar no corpo das algas» é o nome da nova incursão de Graça Magalhães nos meandros da poesia. O título é por si revelador de toda a forma e de toda a técnica que a autora imprime à escrita poética, apontando para uma proposta de leitura que nos remete para uma íntima relação entre o que é íntimo em nós e a forma como conseguimos tornar íntimo o que é do mundo.
Lavrar como quem vai às entranhas e aí remove para plantar e para ser. Lavrar para dar vida e dar à vida a expressão mais pura e mais nossa.
Lavrar no corpo das algas, um espaço de luzidias formas, de desejos incomensuráveis, de relações extremas com o tempo e com a sua negação, mas também com o tempo e a sua apropriação.
Temos um livro em mãos como se tivéssemos a forma da nossa intimidade em mãos para redescobrir pela linha enigmática da linguagem poética. Ainda bem que a poesia é um enigma, pois desse mistério se cria o leitor. E neste livro, está bem presente o desafio de sermos um e de sermos cada um a ler estes versos e deixar para os outros os códigos dos outros, a linguagem do amor dos outros, o seu corpo, o seu desejo e a sua deriva, para nele entrarmos e podermos redescobrir as nossas próprias sensações, os nossos limites e a perseverança das nossas crenças enquanto sujeitos de amor.
Comece-se, então, a viagem pelas palavras de Graça Magalhães e já no primeiro poema pare-se para chegar à visão libertadora do que é íntimo e do íntimo se constrói:
Olhando para mim o tempo dorme/ o silencio vem eterno/ fazer um arco de asa em cada olhar (...)
A poesia tem com as regras do mundo esta desregra, a possibilidade de imiscuir na coisa una que é o corpo as emoções e as transformações da coisa infinita que é o mundo e as suas ideias, os seus sentimentos e ainda as suas paixões.
E posso trespassar o abismo/dar o som ao nome na raiz do grito/ acender delírios no interior da carne/ com o amor aberto como um caminho. / /Reacendem-me os teus dedos traçados em pássaros/ abstractos.
Quantas vezes percebemos, em cada um de nós a raiz do grito, vindo ele de lados tão diferentes e de razões tão dispares? E quantas vezes foi da memória de delírios acesos que foi levado à evidência essa osmose, só possível ao coração, de tornar os dedos pássaros, tantas vezes breves, tantas vezes quentes, outras tantas de fugida, de miragem ou de missão?
Assim largamos o primeiro e belo poema deste livro para seguirmos na direcção a uma outra ideia, muito presente, que se prende com o confronto entre o que é exterior e o que é do domínio da sensibilidade e da intimidade.
Pelas entranhas carnívoras da pele/penso no caule do corpo se um clarão se despenha a meio da flor./ O horizonte baixa-se dentro das mãos / e das mãos as linhas róseas / de espinhos. // Misturo-me com as coisas terrenas que desejo/ e por dentro clareia o corpo entre escombros.
Esta obra é também um exercício sobre a poética que existe dentro da própria poesia num continuado recurso ao que as palavras e o seu trabalho podem significar em tomo das diferentes temáticas que sempre desaguam no amor, no desejo e na liberdade. Nesse imiscuir da poética sublinho o verso:
Dançamos a poética do olhar calado/ porque todas as palavras servem o silêncio / de uma árvore quando cresce.
É fantástica esta analogia entre o crescimento de uma árvore, o de um olhar e da sua poética, numa inteligente apreciação do seu magnífico silêncio e da sua reveladora consequência de beleza e de exuberância face aos frutos, sejam eles do olhar, da árvore ou da própria arte.
A interpretação do tempo é outra constante, como se pode verificar no quinto poema, ao relacionar-se o trajecto da pele com a contagem do tempo:
Colhi as farpas dos frutos/costurei a dobra dos búzios/ para adormecer a pele metáfora do tempo.
Efectiva metáfora do tempo, a pele é também recurso para dizer o indizível e nisso dar claros sinais da expressão enquanto veículo de comunicação da arte e do que não deve ser do domínio do explicito, mas antes do criado, e sobretudo do a criar.
O cheiro a roçar intimidade/ o molusco desancorado/ rumorejando na pele/ cruzando sensações de sabor. // Cada essência assim/ é uma evidência de felicidade sem forma.
Encontro ainda nesta viagem pelo livro, a memória dos pintores impressionistas e a recorrência a paisagens que sempre ambicionámos que ficassem paradas nas nossas muitas idades, nos nossos mais profundos registos.
Talvez eu não seja o tempo interior/ a cereja das árvores no cio/ a lagarta coração invadindo a flor/ o fluir dos lábios ao começo das palavras/ o encantar do silêncio nos pessegueiros.
Este poema é um recato, um pequeno oásis na paisagem, um lugar onde apetece ficar por muito tempo e aí vagarosamente construir a noção de uma vida e de todas as suas ousadias, de todos os extremos que á distância nos revelam o que aprofundámos até encontrar no silêncio o seu encantamento e nos pessegueiros a origem da idade, da sensualidade, no que ela tem de perfume, de brilho e de doçura.
E no fim de cada verso, aparentando como escrevia Eugénio que «as palavras estão gastas», a crença de Graça Magalhães no milagre da escrita em fusão com o mundo:
Dá-lhe tempo de receber o azul pela manhã./ Veste depois a boca de olhares húmidos e gastos/ Derrama o corpo suave na grata imoralidade/ E adormece a primeira das formas/ entre ela e tudo o que pode persistir.
Poesia do corpo e de pactos, de entregas e de juras pousadas na mais inquietante lembrança do amor:
Quero estar outra vez no olhar dos lírios/ no despudor do fogo
Ou ainda noutro poema:
Cheguei a pensar no incêndio das mimosas/ era lá que nos encontrávamos a meio de uma invasão/ nas areias bordadas da praia grande.
No contraste com a inquietação da vida, a inquietação da morte, seja ela no que há em si de para sempre ou de recomeço. Quantas vezes se
morre ao longo de uma só vida? E quantas vidas se perdem nas múltiplas vezes onde fomos morrendo. O último poema de Graça Magalhães aponta para essa síntese de finitudes e despedidas, de momentos muito íntimos que vêem em si uma ligação natural à solidão que chega depois do desejo, da intimidade e de todo o amor:
Quando ela morrer num apresto de festa/ inseparável do mistério da sua boca/ ficarão as palavras horizontais/ no rosto assimétrico das lágrimas./ Ficarão as macieiras perfumadas/ os segredos arqueados/ arrancados ao peito em foices de prata./ Ficará o corpo deformado intenso de aromas/ a dor do xisto nas ardósias e nos gritos/ e um país contemporâneo./ Ficará a imagem das flores acumuladas/ num altar azul sob os ombros dela/ ficará o rosto fechado na linha dos olhos/ o sorriso poisado a ternura imóvel/ e a terra fresca aumentada toda aberta. / Ela poderá aí dormir com os olhos dos insectos.
«Lavrar no corpo das algas» é pois uma obra de difícil aproximação, de recriação e releitura, de desafio às nossas perguntas sobre a nossa própria forma de não dar forma à felicidade e de ser no que se não diz que reside o que mais significa e o que mais incendeia, seja esse o incêndio do corpo, das emoções ou da memória.
Memória de Um Rio
um corpo, um caudal imenso, uma passagem lenta,
uma fonte úbere, uma região erudita,
um nome apenas pensado.
Nos violinos da palavra, rododendros ocultos
perduram, num eco lentíssimo,
onde a incomensurável morte comenta o silencio,
as palmeiras lunares, nas formas,
nos veios de pedra, na névoa que canto,
na flor que vou bebendo, na bílis vermelha,
nas orquídeas verdes, na água dos mortos. Nas fímbrias do tempo, na penumbra dolorosa,
no corpo brando, endurecido,
no cérebro de amar e florir a língua, as asas,
escuto a chuva, a febre, a lentidão,
o secreto devir. Na sombra dos gladíolos, escuto as uvas,
o vinho, o movimento que sustenta a passagem
onde o dia e a noite se consumam,
na água, nos dias, nas galáxias soltas,
nas mãos intranquilas que agarram e desfazem
o silêncio,
onde a sombra se constrói ou desmorona. Maria do Sameiro Barroso, in "As Vindimas da Noite".
28 junho, 2008
"ALENTEJO - Alem Tejo: O amor e a vida" - (clicar)
Alentejo
.
---Pro Silvestre Raposo---
..................é o sangue branco das cobras que perpetua o lugar
.................................Al Berto
1.
nas planícies da memória. E a flor
que estendes entre dedos e silêncio
é o coração que vibra a pureza rubra
o peso do sol na fímbria das escarpas.
2.
sob os abutres, nas cercaduras acúleas
os víveres. Todas as epístolas desnudas
das trovoadas sobre a terra agreste e rude
da cegueira, em busca da fúria de Deus.
Os líquidos definitivos ansiando agora
as oferendas dos charcos de água morta.
3.
que o tacto persegue, a noite escorada
dos animais com raiva. Hortos vorazes
fechados na rotação fincada dos corpos,
searas loiras como oiro serpenteando
no vigor do solstício, o assombro vivo
ao longo desta terra de foles e aromas.
4.
alucinado pela travessia, o choro branco
onde o olhar se estende mágoa seguindo
a saliva doce dos répteis sob o sol polido
para que repouse o bafo. O prodígio, uma
raiz de corpo que se recolhe e dilata fonte
por dentro, as víboras só ansiando ternura.
5.
irrompe por infinitas bocas, as artérias
de sangue aprazível, o perfil mais puro
entre ébrias arribas. As crias explodem
o ventre da argila rubra, abrindo sulcos
celestes por onde as mulheres voltam
a reincidir através do odor dos espinhos.
6.
se fincam no assombro, a imprevisível
quietude do mundo. À noite a labareda
regressa abrindo o dorso da terra exposta
varado pelas cegonhas nos campanários.
O silêncio tecendo as vozes das fêmeas
que se equilibram em suas próprias garras.
7.
a iniciação do pólen, a escora da morte
no eixo múltiplo da sílaba negra. Alentejo
te ungi, te unjo e unjo, despontando ileso
na purificação ateada das águas. E só falo
do horizonte rasgado no espaço primordial
e das madrugadas sazonadas sob as estacas.
8.
as coisas mais simples que acordam o homem
a indomável frescura do corpo uivando hoje
a tranquilidade poisando as cegonhas nas antas.
9.
as últimas portas do tempo e do espaço aberto
em anémonas que lhes vão ceifando as veias,
a memória impoluta onde se cava a sede do cio
para que o sangue jorre entre todos os segredos.
a geometria nua das casas no futuro das manhãs
e cada grão de terra é um alfabeto denso de vida.
João Rasteiro
27 junho, 2008
26 junho, 2008
Lançamento do Livro “Lavrar no Corpo das Algas”
Após umas breves palavras do editor Jorge Fragoso sobre o livro e sobre o prazer que experimentou em editar a poesia de um dos membros do “sarau dos danados”, grupo do qual também faz parte, seguiu-se a apresentação da obra pelo Dr. Pompeu Martins, sociólogo, escritor e poeta. A sessão prosseguiu com algumas palavras da autora sobre as suas relações com a poesia e com os seus leitores e sobre a forma de como, neste livro, reescreve todo um mundo interior como se ele fosse composto por pequenas algas verdes e luminosas. Nesta obra “…as palavras, figurando como algas, são um caminho de símbolos e sinais entre as coisas e as pessoas expandindo a cada momento os momentos gratos de uma insustentável tristeza e beleza, em que se lavra um corpo de ideias que se cruza incessantemente na busca de uma sabedoria interior, que possa, cada vez mais com uma maior precisão, agarrar de forma perfeita o que nos escapa”.
A leitura de alguns poemas esteve a cargo do grupo “sarau dos danados”, ao qual a autora também pertence.
Esta apresentação contou ainda com a presença do acordeonista Paulo Pires do grupo Experiment´arte, proveniente do Algarve, que executou brilhantemente algumas peças musicais, acompanhando a leitura de dois poemas, feita pela própria autora.
Este é o terceiro livro editado por Graça Magalhães sob a chancela da Editora Palimage.
Um aspecto da assistência.
Paulo Pires e Graça Magalhães num momento poético-musical.
África é nome de mulher
"A descrição de África é uma descrição de mulher. África é nome de mulher.
É mulher, Mãe e virgem. É Virgem e Negra. Apesar dos abusos de
que foi vítima, foi-lhe concedida a virgindade eterna."
palavras de João Fortio, in «Demasiado / too much», edição do autor, 2007, p. 56
25 junho, 2008
Canção: dois andamentos
na rua vem
passa por mim
aqui ali além
assim bebo a cor ao dia
peço água fresca à lua
anda por mim
na minha rua
passo por ti
cresces na lua
assim bebo a cor ao dia
amanheço na rua
anda por mim na tarde quente
passa por aqui
passa por gente
assim me luz o dia
vivo por ti contente
assim vivo na sombra desta árvore
dou-te o luxo das sementes
conheço o brio das tardes
o piar dos pássaros comoventes
vou por ti
vem por mim
vivo por ti
corro no fim
anda por nós no canto só de gritos
dá-me a noz do teu peito
dá -me ágil o jeito
vivo por ti no piar aflito
quero-te sou imperfeito
José Ribeiro Marto, in Canções 2007
Corro Com os Pés vazios
Por isso, a respiração dos pássaros é urgente.
Perto, estão ainda as rotas da seda, as encruzilhadas
do sonho,
a luz oblíqua incidindo na calcite amena das cidades
majestosas.
Penso em Alepo, Palmira ou na colunata radiosa
da antiga cidade de Apameia.
E corro com os pés vazios, enrolados em serpentes,
rosas e violinos,
o tempo suspenso na grande noite clangorosa de pilares
obscuros,
Na malha do silêncio, o fogo oculto, a lira vermelha
desoculta, na lenta combustão, o deserto irado e triste,
a água submersa de um veneno a florir,
num eixo descoordenado e cego de vinhas
sanguinolentas, os pés moldados num grito
de acordar de outra forma,
essa, outra, lenta, resguardada de cantar a giesta nocturna,
no vinho turvo, dolente das roseiras altas de inventar
os muros, na aura ígnea das estrelas maceradas,
na pedra líquida,
nas malhas de sangue espesso que transcrevo
num grito lúcido, frio,
............................. transcendente,
.................................................... amanhã.
Maria do Sameiro Barroso, in "As Vindimas da Noite"
Canção sem motivo
Uma canção sem motivo,
Sem história para contar,
Uma canção só de cantar
O prazer de estar-se vivo.
Com as palavras que trago,
Quentes, no coração,
Com essas mesmas te afago
E te chamo meu irmão
E te chamo meu amigo,
Porque é contigo que eu quero
Partilhar esta alegria,
Este prazer de estar vivo.
Uma canção sem enredo,
Correndo com um ribeiro
Pelas veredas do ser -
Meu coração verdadeiro
Vencendo as trevas do medo,
Pla alegria de viver.
Ai, se eu pudesse, canção,
Sem palavras te faria.
Qual bandeira desfraldada
Para todos, sem excepção -
Fosses só pura alegria
De estar vivo e mais nada.
António Simões, inédito.
Convite/ Informação
As Edições Sempre-em-Pé e a Casa Fernando Pessoa têm o prazer de convidar V. Exa para uma sessão em que serão apresentadas as duas séries de poesia actualmente publicadas pela editora referida: a série DiVersos - Poesia e Tradução, que se publica desde 1996, e a colecção de poesia UniVersos, iniciada em 2005.
Além de outros números recentes, estará disponível o n.º 13 da DiVersos, acabado de publicar em Junho. Serão lidos poemas por alguns poetas (Cristino Cortes, João Miguel Henriques, J. T. Parreira e Ruy Ventura) e tradutores (Ana Maria Carvalho, José Lima e Manuel Resende) que já colaboraram com a DiVersos.
Dos quatro títulos publicados na colecção UniVersos, os dois últimos serão abordados com mais vagar: Rio Abaixo, Rio Acima, do poeta alemão Tobias Burghardt, numa edição bilingue com tradução portuguesa de Maria de Nazaré Sanches, e Gloria Victis, do poeta Carlos Garcia de Castro, com a presença e apresentação pelo Autor e comentário crítico do Dr. Rui Cardoso Martins, do Jornal Público.
A sessão será coordenada por José Carlos Costa Marques, um dos coordenadores de DiVersos e editor de ambas as séries. A entrada é livre.
24 junho, 2008
As palavras que não dizem
O que querem dizer
Um animal não é um animal.
Uma estrela desistiu de o ser.
A primavera
não sou eu
nem podia ser
porque cheira a frutos
traz flores no cabelo
e eu faço pressão na água
com o fundo dos dedos.
Sinto um gozo de toalha
Um torpor de guardanapo
Insisto na generosidade humana.
O que mais quero é que não mudem
Os dicionários de palavras puras
Nem sinónimos nem acordos
nem ortografias duvidosas
quando as sílabas acontecem.
Graça Magalhães Junho 2008
23 junho, 2008
chegaram a casa entusiasmados
arrumaram à pressa a despensa – amores-de-fogo
mal catalogados
de tão pura e limpa a crença
um fiozinho de geleia no pátio
e prosseguiram cuidando dos penhascos invisíveis
reescreveram a fronteira enlaçados nas escadas
recordaram um outro fuso horário para lá do espaço
telegramas em pétalas de magnólia
numa ilusão de armários abertos, verdadeiramente nus
e os rostos fecundados
repetidamente gastos de quadro em quadro na parede
parede fluida estampada naquela que encostados descem
as bocas como mais genuíno comburente
e um selo portentoso no elo
bem assente no vértice mais dócil
do andor
– o romance começa onde as feridas se ressalvam
22 junho, 2008
No sítio das Mealhas
O que cheira a laranjas de jardim
são pássaros caídos
em alamedas de água
luar dentro dos olhos das árvores
telhados de amarelo florido
o vermelho no interior dos frutos
cheiro a trevos esmagados
âncoras lançadas aos olhos
memórias virgens de um planeta que se habita
constelações de estradas celestes
tripuladas devagar por um corpo
Os nenúfares de açúcar
dissolvem flores pelo ar
espalham quietude de aromas
e mesmo sabendo que morremos
conhecemos o amor pelos caminhos um do outro.
Graça Magalhães, Verão 2008
Nunca a noite se abriu para nós
Lá fora, um som de tempestade.
Era a noite do fim do dia e restavam apenas ganchos perdidos pelo chão, pés caindo do sofá. Restavam apenas os nossos cabelos artisticamente entrelaçados. Eram as respirações que se ouviam, demoradas e pensadas.
As sombras cinzentas cerravam os malmequeres nas pálpebras e sentia cada átomo que se desprendia do teu corpo. Decorava a dança da tua anatomia, a música do teu pulsar, desenhava cada vértebra.
Éramos mais do que concretos à luz da fogueira.
Éramos um momento, uma filosofia, uma poesia. Éramos a causa e a consequência.
Éramos….
E afastavas-me o cabelo dos olhos num ritmo compassado. Eu olhava-te.
Mas não.
Nunca a noite se abriu para nós.
Sofia Magalhães
21 junho, 2008
As vésperas do mundo
soletro a noite com cristais de vidro limpo, órbitas tensas , coágulos de luz vermelha, os verdadeiros testemunhos da criação inesperada;
as palavras são quase nada
um fôlego solto na garganta expirado deixa passar a marca do rosto de uma só palavra,
não me pergunta por nada
é uma raiz muda , a raiz mais solta
a que ganha o sopro do silêncio como uma planta arrancada,
onde andei com um barco do avesso, e te vi rindo com duas rimas de uma lápide, uma lágrima primeira a outra deixada por ninguém
entregue ao vento , ao sopro fónico do vento, as grandes tempestades dos mares , ao grande voo de pássaros desconhecidos rumo a uma corola de astros, um deles o sol , irmão das nuvens as mais brancas, as mais finas , as que voam sobre farrapos de seda e se vestem como as noivas dos mareantes sempre belas, cúmplices dos exaustos conhecimentos,
não sei eu nada dos meus olhos senão que o mundo empobreceu
as gruas, os guindastes , estradas de céu aberto, glórias parcas desastres ...
não sei nada do ruído que as manhãs trazem nas algibeiras presas
às paredes, a carne solta dos laços na vida rendida na mais profunda ferida que há nuns braços
mas que sei eu , quem de uma janela estende os braços
que sei eu do ar senão linha forte e limpa de um sopro
de um pássaro nocturno que se deixa tolher porque é de luz
de néon e de passos , de sentinelas desconhecidas que prometem sobrevidas agenciando seguros e muitos frutos adiante
nas estações desconhecidas,
nos ventos distantes dos engaços
que sei eu, se a noite traz uma sílaba, e essa seja muda irmã comum
do silêncio, morra estenda os braços , mas só de vida morra só de vida ...
não outro sinal, não há outro sol ou outra lua grande que se sinta nessa sílaba, e espere a salvação , subleve diga sim ao não , desgarre
com as mãos presa ao pão, a única sílaba existente feita de lava, lenha, e água numas mãos puras do linho do fogo e de uma bênção sempre presente, ampliando o grande silêncio da boca audível marca de água.
procuro por um som miúdo uma só letra num muro
que não seja cal, seja já o fogo branco que sai dela,
as centelhas de labareda, um sinal de quem passou
deitou os olhos à lava branca e os prendeu nesse instante,
os colheu depois nas mãos já sem a cor oferecida por paisagens
tão leves, distantes todo o grito fundado nos dias e pausado nos anos
e só por isso recolheu ao mar fundo, ao verde soturno das planícies
e viu junto ao muro a estrela que dá cor à rosa , a tornou transbordante , pétalas de pão crescentes da cor que há nele
a cal, aquele sinal de muro, aquela estrela da cor da rosa que beija
o dia, abre as manhãs de chuva opulenta , cresce com os pássaros sem que eles o saibam e fujam, apenas porque as crianças nas verdes alegrias penduram-se no mundo nas horas sobradas dos recreios ,
esperam uns segundos pela alcateia sonora das campainhas
se entregam à disciplinas muito seguras e mudas, pensando
o tempo das mais próximas brincadeiras, a desafiar as horas e a rosa que é o pão, o lume que é o mais profundo gume que transportam nas mãos cheias sem que arda, queime seja lava e fumo num só segundo;
vão felizes pela beira das ruas, contam livres a liberdade dos seus mundos em que tudo se fez e foi mundo,
não há arco que sobeje no horizonte não há nuvem que poupem à escrita ao desenho inventado de suas mãos, tudo é inquieto tudo aparece ou se esquece , se é vida é vaivém de gente conhecida ou familiar que lhes fala de um futuro maduro como uma rosa ou flor comum voando no ar que nunca poderão apanhar nem brincar
porque o mundo é exacto e mudo
José Ribeiro Marto
*** ***
O vento
Queria transformar o vento.
Dar ao vento uma forma concreta e apta a foto.
Eu precisava pelo menos de enxergar uma parte física
do vento: uma costela, o olho...
Mas a forma do vento me fugia que nem as formas
de uma voz.
...
Estava quase a desistir quando me lembrei do menino
montado no cavalo do vento - que lera em Shakespeare.
Imaginei as crinas soltas do vento a disparar pelos
prados com o menino.
Fotografei aquele vento de crinas soltas. (p.27)
*
O punhal
Eu vi uma cigarra atravessada pelo sol - como se
um punhal atravessasse o corpo.
Um menino foi, chegou perto da cigarra, e disse que
ela nem gemia.
Verifiquei com meus olhos que o punhal estava
atolado no corpo da cigarra
E que ela nem gemia! Fotografei essa metáfora.
Ao fundo da foto aparece o punhal em brasa. (p. 37)
*
Para atingir sua expressão fontana
Miró precisava de esquecer os traços e as doutrinas
que aprendera nos livros.
Desejava atingir a pureza de não saber mais nada.
Fazia um ritual para atingir essa pureza: ia ao fundo
do quintal à busca de uma árvore.
E ali, ao pé da árvore, enterrava de vez tudo aquilo
que havia aprendido nos livros.
Depois depositava sobre o enterro uma nobre
mijada florestal.
Sobre o enterro nasciam borboletas, restos de
insetos, cascas de cigarra etc.
A partir dos restos Miró iniciava a sua engenharia de cores.
Muitas vezes chegava a iluminuras a partir de um
dejeto de mosca deixado na tela.
Sua expressão fontana se iniciava naquela mancha
escura.
O escuro o iluminava. (p. 29)
Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada a minha aldeia estava morta.
Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre
as casas.
Eu estava saindo de uma festa.
Eram quase quatro da manhã.
Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado,
Preparei minha máquina.
O silêncio era o carregador?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.
Preparei minha máquina de novo.
Tinha um perfume de jasmim no beiral de um sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotografei o perdão.
Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Por fim eu enxerguei a Nuvem de calça.
Representou para mim que ela andava na aldeia de
braços com Maiakovski – seu criador.
Fotografei a Nuvem de calça e o poeta.
Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa
mais justa para cobrir a sua noiva.
A foto saiu legal.
Manoel de Barros
In: Ensaios Fotográficos
Rio de Janeiro: Record, 2000
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Retrato Quase Apagado em que se Pode Ver Perfeitamente Nada
Não tenho bens de acontecimentos.
O que não sei fazer desconto nas palavras.
Entesouro frases. Por exemplo:
- Imagens são palavras que nos faltaram.
- Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem.
- Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser.
Ai frases de pensar!
Pensar é uma pedreira.
Estou sendo.
Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo)
Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos, retratos.
Outras de palavras.
Poetas e tontos se compõem com palavras.
Manoel de Barros
In: O Guardador de Águas
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o artista existe pela cintilação do sol
mariah publicada por mariah ... mas, indecentemente "retirado" de o mar atinge-nos
Gosto do céu porque não creio que elle seja infinito.
Que pode ter comigo o que não começa nem acaba?
Não creio no infinito, não creio na eternidade.
Creio que o espaço começa numa parte e numa parte acaba
E que agora e antes d'isso há absolutamente nada.
Creio que o tempo tem um princípio e tem um fim,
E que antes e depois d'isso não havia tempo.
Porque há-se ser isto falso? Falso é fallar de infinitos
Como se soubéssemos o que são de os podermos entender.
Não: tudo é um quantidade de cousas.
Tudo é definido, tudo é limitado, tudo é cousas.
Poema inédito de Alberto Caeiro, não datado, publicado pelo Público.
Fotografia - Maria Costa